quarta-feira, 13 de julho de 2011

CONTOS -MEUS PREFERIDOS

A MORTA -GUY DE MAUPASSANT
 Eu a amara perdidamente! Por que amamos? É realmente estranho ver no mundo apenas um ser, ter no espírito um único pensamento, no coração um úni­co desejo e na boca um único nome: um nome que ascende ininterruptamente, que sobe das profundezas da alma como a água de uma fonte, que ascende aos lábios, e que dizemos, repetimos, murmuramos o tem­po todo, por toda parte, como uma prece. Não vou contar a nossa história. O amor só tem uma história, sempre a mesma. Encontrei-a e amei-a. Eis tudo. E vivi durante um ano na sua ternura, nos seus braços, nas suas carícias, no seu olhar, nos seus vestidos, na sua voz, envolvido, preso, acorrentado a tudo que vinha dela, de maneira tão absoluta que nem sabia mais se era dia ou noite, se estava morto ou vivo, na velha Terra ou em outro lugar qualquer. E depois ela morreu. Como? Não sei, não sei mais. Voltou toda molhada, nutria noite de chuva, e, no dia seguinte, tossia. Tossiu durante cerca de uma semana e ficou de cama. O que aconteceu? Não sei mais. Médicos chegavam, receitavam, retiravam-se. Traziam remédios; uma mulher obrigava-a a tomá-los. Tinha as mãos quentes, a testa ardente e úmida, o olhar brilhante e triste. Falava-lhe, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais. Esqueci tudo, tudo, tudo! Ela morreu, lembro-me muito bem do seu leve suspiro, tão fraco, o último. A enfermeira excla­mou: "Ah! Compreendi, compreendi!" Não soube de mais nada. Nada. vi um padre que falou assim: "Sua amante." Tive a impressão de que a insultava. Já que estava morta, ninguém mais tinha o direito de saber que fora minha amante. Expulsei-o. Veio outro que foi muito bondoso, muito terno. Cho­rei quando me falou dela. Consultaram-me sobre mil coisas relacionadas com o enterro. Não sei mais. Contudo, lembro-me muito bem do caixão, do ruído das marteladas quando a enterraram lá dentro. Ah! meu Deus! Ela foi enterrada! Enterrada! Ela! Naquele bu­raco! Algumas pessoas tinham vindo, amigas. Cami­nhei durante muito tempo pelas ruas. Depois voltei para a casa. No dia seguinte, parti para uma viagem. Ontem, regressei a Paris. Quando revi o meu quarto, o nosso quarto, a nossa cama, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara tudo o que resta da vida de um ser depois da sua morte, o desgosto apoderou-se de mim novamente, de uma forma tão violenta que quase abri a janela para atirar-me à rua. Não podendo mais permanecer no meio daqueles objetos, daquelas paredes que a tinham encerrado, abrigado, e que deviam conservar em suas fendas imperceptíveis milhares de átomos seus, da sua carne e da sua respiração, peguei meu chapéu para sair. De súbito, ao atingir a porta, passei diante do grande espelho que ela mandara colocar no vestíbulo para mirar-se, dos pés à cabeça, todos os dias antes de sair, para ver se toda a sua toalete lhe ia bem, se estava correta e elegante, das botinas ao chapéu. E parei, de chofre, diante desse espelho que tan­tas vezes a refletira. Tantas, tantas vezes, que também deveria ter guardado a sua imagem. Fiquei lá, de pé, trêmulo, os olhos fixos no vidro liso, profundo, vazio, mas que a contivera toda, que a possuíra tanto quanto eu, tanto quanto o meu olhar apaixonado. Tive a impressão de que amava aquele espelho - toquei-o - estava frio! Ah! recordação! recordação! Espelho doloroso, espelho ardente, espelho vivo, espelho horrível, que inflige todas as torturas! Felizes os homens cujo coração, como um espelho onde os reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que passou à sua frente, tudo o que se contemplou e mirou na sua feição, no seu amor! Como sofro! Saí e, involuntariamente, sem saber, sem que­rer, dirigi-me ao cemitério. Encontrei seu túmulo, um túmulo singelo, uma cruz de mármore com algumas palavras: "Ela amou, foi amada, e morreu." Lá estava ela, embaixo, apodrecendo! Que hor­ror! Eu soluçava, a fronte no chão. Fiquei lá por muito tempo, muito tempo. Depois, percebi que a noite se aproximava. Então, um desejo estranho, louco, um desejo de amante desesperado apoderou-se de mim. Resolvi passar a noite junto dela, a última noite, chorando no seu túmulo. Mas me ve­riam, me expulsariam. Que fazer? Fui esperto. Levan­tei-me e comecei a vagar pela cidade dos desaparecidos. Vagava, vagava. Como é pequena essa cidade ao lado da outra, daquela em que vivemos! Precisamos de casas altas, de ruas, de tanto espaço, para as quatro gerações que vêem a luz ao mesmo tempo, que bebem a água das fontes, o vinho das vinhas e comem o pão das planícies. E para todas as gerações dos mortos, para toda a série de homens que chegaram até nós, quase nada, um terreno apenas, quase nada! A terra os toma de volta, o esquecimento os apaga. Adeus! Na extremidade do cemitério habitado, avistei subitamente o cemitério abandonado, onde os velhos defuntos acabam de misturar-se à terra, onde as pró­prias cruzes apodrecem, e onde amanhã serão coloca­dos os últimos que chegarem. Está cheio de rosas silvestres, de ciprestes negros e vigorosos, um jardim triste e soberbo alimentado com carne humana. Estava só, completamente só. Agachei-me perto de uma árvore verde. Escondi-me completamente en­tre os galhos grossos e escuros. E esperei, agarrado ao tronco como um náufra­go aos destroços. Quando a noite ficou escura, bem escura, dei­xei o meu abrigo e comecei a caminhar de mansinho, com passos lentos e surdos, por essa terra repleta de mortos. Vaguei durante muito, muito tempo. Não a en­contrava. Braços estendidos, olhos abertos, esbarran­do nos túmulos com as mãos, com os pés, com os joe­­lhos, com o peito, e até com a cabeça, eu vagava sem encontrá-la. Tocava, tateava como um cego que pro­cura o caminho, apalpava pedras, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores murchas! Lia nomes com os dedos, passando-os sobre as letras. Que noite! Que noite! Não a encontrava! Não havia lua! Que noite! Sentia medo, um medo horrível, nesses caminhos estreitos entre duas filas de túmulos! Túmulos! Túmulos! Túmulos. Sempre túmulos! À direita, à esquerda, à frente, à minha volta, por toda parte, túmulos! Sentei-me num deles, pois não podia mais caminhar, de tal forma meus joelhos se dobravam. Ouvia meu coração bater! E também ouvia outra coisa! O quê? Um rumor confuso, indefinível! Viria esse ruído do meu cérebro desvairado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, da terra semeada de cadáveres humanos? Olhei à minha volta! Quanto tempo fiquei ali? Não sei. Estava parali­sado de terror, alucinado de pavor, prestes a gritar, pres­tes a morrer. E, de súbito, tive a impressão de que a laje de mármore onde estava sentado se movia. Realmente, ela se movia, como se a estivessem levantando. Com um salto, precipitei-me para o túmulo vizinho e vi, sim, vi erguer-se verticalmente a laje que acabara de dei­xar; e o morto apareceu, um esqueleto nu que empur­rava a lápide com as costas encurvadas. Eu via, via muito bem, embora a escuridão fosse profunda. Pude ler sobre a cruz: "Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Amava os seus, foi honesto e bom, e morreu na paz do Senhor." O morto também lia o que estava escrito no seu túmulo. Depois, apanhou uma pedra no chão, uma pedrinha pontiaguda, e começou a raspar cuidadosamente o que lá estava. Apagou tudo, lentamente, con­templando com seus olhos vazios o lugar onde ainda há pouco existiam letras gravadas; e, com a ponta do osso que fora seu indicador, escreveu com letras lumi­nosas, como essas linhas que traçamos com a ponta de um fósforo: "Aqui jaz Jacques Olivant, morto aos cinqüenta e um anos de idade. Apressou com maus tratos a mor­te do pai de quem desejava herdar, torturou a mulher, atormentou os filhos, enganou os vizinhos, roubou sempre que pode e morreu miseravelmente." Quando acabou de escrever, o morto contemplou sua obra, imóvel. E, voltando-me, notei que todos os túmulos estavam abertos, que todos os cadáveres os tinham abandonado, que todos tinham apagado as mentiras inscritas pelos parentes na pedra funerária, para aí restabelecerem a verdade. E eu via que todos tinham sido carrascos dos parentes, vingativos, desonestos, hipócritas, mentirosos, pérfidos, caluniadores, invejosos, que tinham rou­bado, enganado, cometido todos os atos vergonhosos, abomináveis, esses bons pais, essas esposas fiéis, es­ses filhos devotados, essas moças castas, esses comerciantes probos, esses homens e mulheres ditos irrepreensíveis. Escreviam todos ao mesmo tempo, no limiar da sua morada eterna, a cruel, terrível e santa verdade que todo mundo ignora ou finge ignorar nesta Terra. Imaginei que também ela devia ter escrito a verdade no seu túmulo. E agora já sem medo, correndo por entre os caixões entreabertos, por entre os cadáve­res, por entre os esqueletos, fui em sua direção, certo de que logo a encontraria. Reconheci-a de longe, sem ver o rosto envolto no sudário. E sobre a cruz de mármore onde há pouco lera: "Ela amou, foi amada, e morreu", divisei: "Tendo saído, um dia, para enganar seu amante, resfriou-se sob a chuva, e morreu”. Parece que me encontraram inanimado, ao nas­cer do dia, junto a uma sepultura. (31 de maio de 1887) MAUPASSANT, Guy de. Contos Fantásticos. (Trad. José Thomas Brum). Porto Alegre: L&PM, 1997. Coleção L&PM Pocket, vol. 24.

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Mario Quintana